Descrição
Abstract. This paper briefly explores some possibilities for dialogue between the film Terra em Transe (1967), directed by Glauber Rocha, and Education, considering that it provides a crucial perspective on the Brazilian historical and political context of the 1960s. The study aims to demonstrate that, despite the richness offered by the film, there is room for reflection oriented toward the formative construction of Brazilian citizens' memories within teacher education. Recognizing the dimension of reality conveyed through cinema, Terra em Transe offers valuable elements for studying the Brazilian people. It is concluded that art and this film in particular contribute to the political awareness of teachers and provide support for discussions on citizenship and the Brazilian historical context.
Keywords: Cinema, education, memory.
Resumo. O presente trabalho contempla sinteticamente algumas possibilidades para o diálogo entre o filme Terra em Transe (1967), dirigido por Glauber Rocha, e a Educação, tendo em vista que permite um destaque fundamental para o contexto histórico e político brasileiro na década de 1960. O trabalho busca apresentar que no meio da riqueza trazida pelo filme, há espaço para uma reflexão que caminha no sentido formativo de construção da memória do cidadão brasileiro na formação de professores. Entendendo a dimensão de realidade trazida pelo cinema, Terra em Transe fornece elementos para o estudo do povo brasileiro. Concluiu-se que a arte e este filme contribuem para a politização de professores e fornecem subsídios para discussões sobre a cidadania e o contexto histórico brasileiro.
Palavras-chave: Cinema, educação, memória.
Introdução
As obras cinematográficas têm capacidade de impactar, sensibilizar, desenvolver a imaginação e a criatividade dos espectadores (Silva et al. 2018). O cinema, enquanto linguagem artística e prática social, constitui um importante caminho formativo no campo da educação, especialmente na formação inicial e continuada de professores. Para além de seu caráter estético, o cinema oferece possibilidades pedagógicas que favorecem a reflexão crítica sobre o mundo e sobre as relações humanas, promovendo o diálogo entre saberes científicos, éticos e culturais.
Conforme Aumont (1992), a linguagem cinematográfica possibilita múltiplas formas de leitura da realidade, estimulando o espectador a reconhecer as construções ideológicas e simbólicas presentes nas imagens. Nesse sentido, ao ser dialogado com o contexto formativo, o cinema pode atuar como dispositivo pedagógico que amplia a consciência crítica dos licenciandos, em consonância com a perspectiva freireana de educação libertadora (Freire, 1996), por exemplo.
Além disso, como aponta Dewey (2010), a experiência estética é fundamental na constituição da sensibilidade e da imaginação, dimensões indispensáveis à prática docente comprometida com a humanização. Assim, compreender o cinema como mediador de experiências e reflexões contribui para a formação de professores mais críticos, sensíveis e capazes de relacionar conhecimento, cultura e sociedade.
Terra em transe é um filme de Glauber Rocha, de 1967, que participou do movimento Cinema Novo como um dos filmes mais emblemáticos de sua época e momento político.
O Cinema Novo foi um influente movimento cinematográfico brasileiro que teve início na década de 1960. Caracterizado por sua forte crítica à desigualdade social, pela estética da fome e pela ideia do fazer cinematográfico guiado por "uma câmera na mão e uma ideia na cabeça". Influenciado pelo neorrealismo italiano e pela Nouvelle Vague francesa, propunha uma linguagem cinematográfica autêntica e engajada, que rompia com o cinema tradicional da época. Portanto, essa forma de cinema não pode ser compreendida fora da sociedade que o produziu, como afirmou Mascarello (2006).
O filme Terra em Transe (1967) dirigido por Glauber Rocha, conta a história de Eldorado, país fictício da América Latina, que é palco de uma convulsão interna desencadeada pela luta em busca de poder. O enredo acompanha Paulo Martins, um poeta e jornalista dividido entre duas forças políticas opostas no fictício país de Eldorado: de um lado, o populista Felipe Vieira, que representa as esperanças populares de mudança, mas mostra fragilidades ao assumir o poder; de outro, o conservador Porfírio Diaz, ligado às elites econômicas e à manutenção do status quo. Paulo, ao mesmo tempo seduzido e desencantado com ambos os lados, acaba em transe, perdido entre sua utopia revolucionária e a realidade opressora.
Um filme apresentado como tradutor da loucura da elite e da submissão cega das massas, Terra em Transe promove uma experiência poética e política que, tratando-se de um filme que remete ao contexto brasileiro, oferece, como nas palavras de Nelson Rodrigues, um vômito triunfal quando se esperava um Brasil de mesas postas. O filme é potente em revelar a fragilidade da esquerda e do populismo em responder às necessidades do povo, das quais esteve sempre alheio. É caracterizado pela forte denúncia presente no cinema novo, mas também revela a originalidade da perspectiva de Glauber. Terra em transe, de 1967, satiriza o líder populista e as massas imbecis que se deixam enganar (Ramos, 2006).
Cinema e Memória
Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, pode ser compreendida como uma profunda alegoria da condição política e social do Brasil, revelando, em chave estética e simbólica, as tensões entre poder e dominação. O filme constrói uma verdadeira anatomia do país, expondo as contradições de uma nação marcada por processos de modernização conservadora e por aquilo que Gramsci define como “revoluções passivas” — transformações que ocorrem sem a efetiva participação popular (SOUSA, 2010). Por meio de uma linguagem altamente metafórica, Glauber mobiliza elementos históricos, poéticos e filosóficos para representar o impasse entre o sonho de mudança e a realidade política marcada por autoritarismos e acomodações. A alegoria de Eldorado funciona como espelho do Brasil: um território em permanente transe entre a utopia e a barbárie, entre a emancipação e a submissão.
Quando dizemos que o cinema cria um mundo ficcional, precisamos entendê-lo como uma forma de a realidade apresentar-se (Fabris, 2008). Nesse sentido, destaca-se o potencial político-pedagógico do cinema e da obra de Glauber Rocha, tendo em vista a possibilidade de tratar o conceito de classe social, subdesenvolvimento em seu enfoque sociológico (Fonseca, 2018) ou até sobre a maneira terceiro-mundista em que se concebe a cultura (Prysthon, 2007). Terra em Transe, portanto, codifica o redimensionamento da visão artística do país e suas interpretações sobre a realidade brasileira (Ramos, 2006).
A formação de professores críticos está intrinsecamente ligada ao desenvolvimento de uma educação voltada para a cidadania e para a transformação social. Tal perspectiva rompe com modelos tradicionais e tecnicistas de ensino, que reduzem o professor a mero transmissor de conteúdos, e o reconhece como sujeito histórico, capaz de intervir na realidade. De acordo com Freire (1996), o educador crítico é aquele que compreende a educação como prática de liberdade, promovendo a autonomia dos educandos e a leitura do mundo em sua complexidade.
Sabendo que, o diálogo entre o cinema e educação-critica faz parte da história do cinema (Temoteo et. al, 2021), Terra em Transe proporciona um terreno amplo e diverso para o estabelecimento desse diálogo, além de possibilitar um espaço de confrontamento com aspectos culturais, econômicos, sociais, políticos, emocionais, de atitudes e valores (Farias et. al, 2021) que são essenciais para uma formação significativa de professores.
Segundo a ideia sugerida por Pollak (1992, p. 2) existe a possibilidade de que por meio de uma socialização política, ou de uma socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase que herdada. Essa memória, que precisa ser construída no processo de formação dos sujeitos, pode ser desenvolvida por um processo pedagógico presente na educação e se mostra importante inclusive para o processo de aprendizado acerca da cultura.
A formação de professores comprometidos com práticas pedagógicas problematizadoras e politizadoras exige a constituição de sujeitos intelectualmente autônomos, esteticamente e eticamente sensíveis às contradições do mundo contemporâneo. Nesse horizonte, o cinema e as artes configuram-se como campos privilegiados para o exercício da crítica e da imaginação de finalidade pedagógica, pois operam na interface entre experiência sensível e elaboração conceitual.
Tais linguagens desestabilizam o pensamento instrumental e instauram uma pedagogia do olhar - uma forma de conhecer que interroga, desnaturaliza e reinterpreta as estruturas simbólicas e ideológicas da realidade. Em consonância com Freire (1996), trata-se de compreender o ato educativo como prática de liberdade, em que o professor assume-se como sujeito histórico e político, mediador de processos de conscientização e emancipação.
O cinema, nesse contexto, não apenas representa o mundo, mas o problematiza - oferecendo aos futuros educadores uma experiência formativa que conjuga sensibilidade, ética e ação transformadora. Ou seja, ao haver a possibilidade de uma construção de olhares voltados para a identificação dos problemas sociais, volta-se o processo educativo para um foco também de transformações.
O cinema de Glauber Rocha pode ser um elemento formativo potencial para o processo de construção ou reconstrução da memória do povo brasileiro, tendo em vista que traz elementos da história do Brasil em determinado contexto que podem ser utilizados para a valoração de uma formação crítica e de memória política.
Considerações
Conclui-se, portanto, que Glauber Rocha em Terra em Transe oferece a oportunidade singular de reconstrução da memória, uma experiência enriquecedora do exercício intelectual crítico no geral, com grandes possibilidades para o fazer educacional, sabendo de seu explícito retrato da sociedade e identidade brasileira num dado período e contexto nacional oferecem elementos para a memória do educando acerca da sua história.
Nesse sentido, Terra em Transe não é apenas uma obra cinematográfica, mas uma ontologia do ser brasileiro - um espelho crítico das nossas formas de pensar, agir e construir o mundo. Para a formação de professores, o filme oferece um potente campo de reflexão sobre identidade, política, linguagem e poder, permitindo articular estética e crítica social na leitura do Brasil. Ao propor uma experiência de desconforto e reflexão, Glauber Rocha convida o espectador a ocupar um lugar ativo diante da obra, a interpretar e questionar, o que o torna particularmente fecundo para a formação de educadores comprometidos com a leitura crítica da realidade e com uma prática docente transformadora.
Ao mobilizar a sensibilidade, a reflexão crítica e o diálogo com a realidade social, o cinema e as práticas artísticas favorecem a construção de uma docência comprometida com a emancipação humana e com a cidadania, a medida em que se posiciona politicamente a prática do professor. Nessa perspectiva, a arte torna-se um campo de formação ética e estética, capaz de inspirar educadores a compreender o ensino como ato político e transformador.
O diálogo entre Terra em Transe e a educação leva à compreensão de que educar é também politizar, ou seja, revelar as contradições da sociedade, questionar discursos prontos e formar sujeitos capazes de interpretar criticamente o mundo. Assim como o filme denuncia os impasses da política brasileira e latino-americana, a educação crítica precisa abrir espaço para que os estudantes e professores analisem as relações de poder, a manipulação ideológica e os limites do populismo, buscando alternativas transformadoras em suas práticas de sala de aula.
Agradecimento às instituições de fomento: CAPES, CNPq e FAPEMIG.
Referências
AUMONT, Jacques. A estética do filme. Tradução de Francisco Soares. Lisboa: Edições 70, 1992.
DEWEY, John. Arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
FABRIS, Elí Henn. Cinema e educação: um caminho metodológico. Educ. Real., Porto Alegre , v. 33, n. 01, p. 117-133, jun. 2008 . Disponível em http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-31432008000100010&lng=pt&nrm=iso. acessos em 04 mar. 2025.
FARIAS, Luciana Marques et al.. HISTÓRIA E FILOSOFIA DA BIOLOGIA A PARTIR DO CINEMA: AS INSTÂNCIAS DE DIÁLOGO ESTABELECIDAS NA VISÃO DE FUTUROS PROFESSORES DE BIOLOGIA.. In: Anais Encontro Nacional de Jogos e Atividades Lúdicas no Ensino de Química, Física e Biologia. Anais...Rio de Janeiro(RJ) Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2021. Disponível em: https//www.even3.com.br/anais/jalequimlevel4/330540-HISTORIA-E-FILOSOFIA-DA-BIOLOGIA-A-PARTIR-DO-CINEMA--AS-INSTANCIAS-DE-DIALOGO-ESTABELECIDAS-NA-VISAO-DE-FUTUROS-P. Acesso em: 04/03/2025
FONSECA, J. T. Imagens do escritor e do poeta: em Memórias do subdesenvolvimento e Terra em transe. Aletria: Revista de Estudos de Literatura, [S. l.], v. 8, p. 25–33, 2018. DOI: 10.17851/2317-2096.8.25-33. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/17859. Acesso em: 3 mar. 2025.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006. (Coleção Campo Imagético).
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992.
PRYSTHON, Angela. Terra em Transe: o cosmopolitismo às avessa do cinema novo. Galaxia Revista Do Programa De Pós Graduação Em Comunicação E Semiótica, 2007. Disponível : https://www.academia.edu/31098620/A_Terra_em_Transe_o_cosmopolitismo_%C3%A0s_avessas_do_cinema_novo. Acesso em: 3 mar. 2025.
RAMOS, Alcides Freire. TERRA EM TRANSE (1967, GLAUBER ROCHA): ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E NOVAS PERSPECTIVAS DE INTERPRETAÇÃO. Fênix - Revista de História e Estudos Culturais, [S. l.], v. 3, n. 2, 2006. Disponível em: https://revistafenix.emnuvens.com.br/revistafenix/article/view/907. Acesso em: 3 mar. 2025.
SILVA, G. H. A.; OLIVEIRA, C. de S.; NASCIMENTO JÚNIOR, A. F. Os Diálogos presentes no filme "O Menino e o Mundo" com a educação ambiental. Revista do Edicc, Campinas, v. 5, n. 5, p. 119-130, out. 2018. Trabalho apresentado no 5º Encontro de Divulgação de Ciência e Cultura, 2018, [Campinas, SP]. Disponível em: file:///C:/Users/PC/Downloads/baygon,+Gerente+da+revista,+ART+-+Gustavo+Henrique+et+al.pdf. Acesso em 4 mar. 2025.
SOUSA, Antonia de Abreu. O conceito Gramsciano de revolução passiva e o estado brasileiro. In: Revista Labor, v.3, n.1, 2010. Disponível em: http://www.revistalabor.ufc.br/Artigo/volume3/conceito_gramsciano.pdf Acesso em: 3 mar. 2025.
TEMOTEO, Paulo Antonio de Oliveira; GONÇALVES, Laise Vieira; NASCIMENTO JUNIOR, Antonio Fernandes. “OS LOBOS NUNCA CHORAM”: A ECOLOGIA DE POPULAÇÕES ENTENDIDA A PARTIR DO CINEMA. Revista Valore, [S. l.], v. 6, p. 1438–1450, 2021. DOI: 10.22408/reva6020219121438-1450. Disponível em: https://revistavalore.emnuvens.com.br/valore/article/view/912. Acesso em: 4 mar. 2025.
| Selecione a modalidade do seu trabalho | Resumo Expandido |
|---|