Descrição
O céu como um livro de histórias sem fim: aulas de astronomia cultural indígena on-line para crianças e seus efeitos formativos na universidade
Analu Franco Araujo 11, Karen Luz Burgoa Rosso 21,2 e José A. C. Nogales2
1Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Ambiental – UFLA
2Departamento de Física/DFI – Universidade Federal de Lavras (UFLA)
Caixa Postal 3037 CEP 37203-202 – Lavras, MG – Brasil
analu.araujo2@estudante.ufla.br; karenluz@ufla.br; jnogales@ufla.br
Abstract. Once upon a time, a group of university students decided to attend astronomy classes designed for children—and, in doing so, helped rediscover the art of teaching and learning. We wanted to know: what do these university students, from such diverse fields, see as essential? Their answers inductively revealed five paths: teacher mediation, visual resources, conceptual learning, science-culture integration, and the affection that transforms everything. Evidence suggests that these classes, combined with the children's approach to knowledge, marked above all by human connection and curiosity, spark strong interest among university students. We conclude that experiences of this nature position extension as an integrative practice and promoter of more reflective science teaching, an invitation to redefine what it means to teach and learn.
Keywords: Indigenous astronomy; Science education; University extension; Cultural knowledge; Teacher mediation; Humanized learning.
*Resumo: Era uma vez um grupo de estudantes da universidade que decidiu acompanhar aulas de astronomia destinadas a crianças - e, nesse gesto, ajudou a redescobrir a arte de ensinar e aprender. Queríamos saber: o que esses universitários, de áreas tão distintas, enxergam de essencial? Suas respostas revelaram, de forma indutiva, cinco caminhos: mediação docente, recursos visuais, aprendizagem conceitual, integração ciência–cultura e o afeto que tudo transforma. As evidências indicam que essas aulas, somadas à postura das crianças diante do conhecimento marcada sobretudo pela relação humana e pela curiosidade, despertam forte interesse em universitários. Concluímos que experiências dessa natureza posicionam a extensão como prática integradora e promotora de um ensino de ciências mais reflexivo, um convite para ressignificar o que é ensinar e aprender.
Palavras-chave: Astronomia indígena; Educação em ciências; Extensão universitária; Saberes culturais; Mediação docente; Aprendizagem humanizada.*
Introdução
A astronomia tem papel singular na promoção do letramento científico, por articular observação do céu, modelagem de fenômenos naturais e narrativas culturais que dão sentido local ao conhecimento. Em contextos de educação não formal e extensão universitária, propostas didáticas que combinam visualizações do céu, atividades concretas e histórias das constelações permitem aproximar conteúdos abstratos de públicos diversos — inclusive de graduandos(as) de áreas fora das ciências exatas, interessados em ampliar competências de comunicação pública da ciência e de interpretação crítica de evidências (VIEIRA & BATISTA, 2022; CARDOSO, 2021; COUTINHO, 2024).
Neste trabalho, analisamos a experiência do curso de extensão Festa das Estrelas Online: Aventuras Espaciais para Pequenos Cientistas, ofertado no âmbito do projeto A Magia da Física e do Universo (UFLA), com foco no olhar de estudantes universitários de áreas não pertencentes às ciências exatas que acompanharam encontros e registraram suas percepções sobre mediação, recursos didáticos e aprendizagens conceituais. Consideramos ainda a dimensão ciência–cultura, em especial a presença de constelações de povos originários, por seu potencial de descentrar visões eurocêntricas e ampliar a compreensão da astronomia como empreendimento plural (COUTINHO, 2024; CARDOSO, 2021).
Para interpretar as respostas aos questionários, utilizamos análise de conteúdo, segundo Bardin, por sua adequação à organização, categorização e interpretação qualitativa de comunicações em educação (BARDIN, 2011; SILVA & FOSSÁ, 2015). O objetivo é discutir quais elementos da mediação e do design das aulas foram percebidos como centrais por esses(as) graduandos(as), o que relataram aprender e como a integração entre ciência e cultura contribuiu para o interesse e a reflexão sobre o céu.
À luz da pedagogia histórico-crítica, a escola (e, por extensão, as ações de extensão universitária) não apenas reflete a organização social, mas atua na sua transformação ao socializar sistematicamente a cultura humana. Nesse marco, o modo como o conhecimento é mediado em diferentes contextos e para distintos públicos condiciona formas de ver, compreender e posicionar-se diante da realidade. Assim, investigar quais mediações favorecem letramento científico e comunicação pública em astronomia, inclusive para estudantes de outras áreas não afins, alinha-se à função social da instituição formadora (MARTINS, 2016).
Métodos
A análise da perspectiva discente sobre o curso de extensão Festa das Estrelas Online foi realizada a partir de questionários aplicados aos estudantes participantes. Ao todo, 21 discentes da UFLA se inscreveram (20 da graduação e 1 da pós-graduação). Dentre eles, cinco acompanharam as aulas assíncronas e um participou sincronamente; quatro estudantes responderam ao questionário referente a quatro aulas (A1–A4), em um universo de 12 aulas do curso. Perfil dos respondentes: tratam-se de graduandos(as) de cursos fora das ciências exatas (p.ex., Administração Pública, Medicina Veterinária). Foram analisadas quatro perguntas do instrumento (Q1–Q4), formuladas para captar impressões, engajamento, percepções conceituais e avaliação das metodologias adotadas em cada aula assistida.
Aplicamos análise de conteúdo, segundo Bardin, em três etapas: pré-análise (leitura flutuante, seleção do corpus e definição dos objetivos), exploração do material (codificação e categorização temática) e tratamento/interpretação (agregação das categorias e inferências). Adotamos a resposta individual a cada pergunta (Q1–Q4) como unidade de registro e a aula observada (A1–A4) como unidade de contexto; os respondentes foram identificados como P1–P4. As categorias foram construídas a posteriori, emergindo do corpus com apoio do roteiro do instrumento. Para garantir rastreabilidade, estruturamos uma matriz Participante (P1–P4) × Aula (A1–A4) × Pergunta (Q1–Q4) × Categoria e elaboramos uma tabela de evidências (trecho → código → categoria).
As respostas foram coletadas originalmente como avaliação pedagógica de rotina do curso. Para esta submissão, realizamos apenas análises agregadas e excertos totalmente anonimizados (P1–P4), sem qualquer dado identificador, caracterizando risco mínimo e respeitando o princípio da não maleficência.
Resultados
Quatro participantes (P1–P4) acompanharam combinações distintas de aulas (A1–A4) do curso Festa das Estrelas Online. Em linhas gerais, P1 assistiu: Brincando de Planetas; Constelações que dançam durante a noite: rotação; As luas do Sistema Solar; Missão Rosetta. P2: Brincando de Planetas; Pra onde tenha sol; Constelações que dançam à noite: rotação; Constelações Tupi-Guarani: translação. P3: Brincando de Planetas; Pra onde tenha sol; Constelações que dançam à noite; Constelações Tupi-Guarani: translação. P4: Pra onde tenha sol é para lá que eu vou; Brincando de Planetas; Constelações que dançam à noite: rotação; Estações do ano e constelações Tupi-Guarani: translação.
Definido “quem viu o quê”, passamos do percorrido ao percebido: examinamos as respostas às Q1–Q4 para identificar o que chamou atenção, o que houve de novidade conceitual e como as aulas promoveram reflexões — insumos que depois ancoram a Tabela 1 de evidências.
Q1 — O que mais chamou atenção.
Emergiram três focos: mediação docente (P3 em todas as aulas; P4 em três aulas), tema/conteúdo específico (P1 com ênfase recorrente) e recursos visuais/tecnológicos (P2 mencionando imagens/vídeos).
Q2 — O que aprenderam de novo.
P2 relata novidade conceitual: asterismos (Três Marias “verdadeira”/“falsa”), luas de Saturno, cores das estrelas e calor, distinções entre rotação/translação, e marcação dos meses com constelações Tupi-Guarani (Ema, Anta, Homem Velho). P2 também menciona a utilização de recursos didáticos, visuais e tecnológicos para abordar o conceito de que o (Sol também realiza um movimento de translação).
Q3 — Como as aulas ajudam a refletir sobre céu/ciência.
P2 detalha contribuições consistentes: aproximação com o cotidiano, recursos visuais (incl. gifs) e observação do céu; P4 amplia para pertencimento cosmológico e compreensão de ciclos/estações; P4 contextualiza novas formas de obtenção de conhecimento; P1 registra interesse em buscar mais informações; P3 não respondeu. "
Q4 — O que a universidade pode aprender com as crianças.
Pontos convergentes: curiosidade, perguntas sem julgamento, imaginação/ludicidade e entusiasmo como motores de aprendizagem — inspirando práticas universitárias mais abertas e criativas. "A sede de aprendizado "— o encorajamento com o afetivo–motivacional.
A codificação das respostas às quatro perguntas
Tabela 1. Exemplos de rastreabilidade (trecho → código → categoria) com referência a P (participante), A (aula) e Q (pergunta analítica)
(Q1–Q4) evidenciou cinco eixos recorrentes: (i) mediação docente; (ii) recursos visuais/tecnológicos; (iii) aprendizagem conceitual em astronomia; (iv) integração ciência–cultura; (v) aspectos afetivo-motivacionais. A seguir, apresentamos a Tabela 1, com a trilha de evidências (trecho → código → categoria) e a referência P–A–Q.
Os dados da Tabela 1 apontam para a mediação como eixo estruturante da experiência, potencializada por recursos visuais que tornam tangíveis conceitos astronômicos e habilitam aprendizagens conceituais específicas. A integração ciência–cultura amplia o significado das observações (constelações Tupi-Guarani como marcadores de ciclos), enquanto componentes afetivo-motivacionais sustentam interesse e participação. Diferenças entre participantes revelam trajetórias distintas de envolvimento (ora centradas no tema, ora na explicação ou nos recursos). A presença de respostas sem dúvidas exige cautela interpretativa. Esses achados fundamentam as recomendações didáticas discutidas na seção seguinte.
Considerações finais
Os achados dialogam com a pedagogia histórico-crítica ao indicar que mediações intencionais — que articulam visualização, atividade concreta e ponte cultural — qualificam a socialização da cultura científica e ampliam a agência formativa da universidade em contextos não-formais (MARTINS, 2016).
Os resultados evidenciam cinco eixos recorrentes nas respostas: mediação docente, recursos visuais/tecnológicos, aprendizagem conceitual em astronomia, integração ciência–cultura e aspectos afetivo-motivacionais. A convergência desses eixos sugere que a combinação “visualização-chave + atividade concreta + narrativa cultural” operou como trilha didática eficaz para reduzir a abstração, produzir novidades conceituais (p. ex., asterismos, ciclos celestes, luas de Saturno, cores das estrelas) e sustentar engajamento.
Do ponto de vista da mediação, os(as) participantes destacam a clareza das explicações e a sequência de atividades como elementos estruturantes da experiência — achado coerente com literatura de ensino de astronomia que recomenda tornar visível o raciocínio por trás dos fenômenos e apoiar a observação com representações adequadas (VIEIRA & BATISTA, 2022). O uso de recursos visuais (imagens, vídeos, gifs e softwares de céu) foi associado à compreensão incremental: visualizar primeiro, nomear depois e, por fim, conectar aos modelos (rotação, translação, estações), caminho que os próprios relatos descrevem como facilitador.
A integração ciência–cultura assume papel central quando constelações Tupi-Guarani são mobilizadas para interpretar ciclos/meses: os(as) graduandos(as) reconhecem a potência de articular conhecimento científico e saberes locais, deslocando olhares exclusivamente eurocêntricos e ampliando o sentido da observação do céu (COUTINHO, 2024; CARDOSO, 2021). Esse movimento não apenas motiva, mas favorece transferência: observar o céu fora da aula, relacionar constelações a períodos do ano e discutir implicações para o cotidiano.
Em termos de formação em cursos universitários, os dados apontam ganhos transversais: capacidade de explicar para públicos leigos, seleção de metáforas e visualizações adequadas, atenção ao vocabulário e à sequência com que conceitos são apresentados. Trata-se de competências valiosas para áreas como administração pública, saúde e comunicação institucional — quando decisões e orientações dependem de interpretar e traduzir ciência com precisão e clareza.
Implicações práticas. Para cursos e ações de extensão em astronomia, sugerimos um checklist enxuto por aula: (1) objetivo em uma frase; (2) visualização-chave (uma imagem/anim/soft de céu); (3) atividade concreta curta; (4) ponte cultural/local (constelações/estórias do céu); (5) fechamento com retomada das perguntas dos participantes. Para turmas universitárias, recomendamos incorporar momentos de mediação (explicar um fenômeno a um par não especialista), com rubricas de clareza, precisão e adequação ao público.
Agradecimentos
Os autores agradecem o apoio financeiro das agências CAPES, CNPq e FAPEMIG.
Referências
BARDIN, L. Análise de conteúdo. Trad. Luís Antero Reto; Augusto Pinheiro. Lisboa: Edições 70, 2011.
VIEIRA, T. F.; BATISTA, M. C. Análise de investigações sobre temas de astronomia e suas abordagens no ensino médio brasileiro. Vitruvian Cogitationes, v. 3, p. 1–16, 2022.
SILVA, A. H.; FOSSÁ, M. I. T. Análise de conteúdo: exemplo de aplicação da técnica para análise de dados qualitativos. Qualitas Revista Eletrônica, v. 16, n. 1, p. 1–14, 2015.
COUTINHO, I. G. Resgatando “as coisas do céu”: uma prática decolonial de astronomia e cosmologia sob a perspectiva das cosmovisões dos povos originários na formação continuada de docentes. 2024. 118 f. Dissertação (Mestrado em Educação Científica e Ambiental) — Universidade Federal de Lavras, Lavras, 2024.
CARDOSO, P. C. A. O ensino de astronomia e suas contribuições na formação continuada de professoras: reflexões a partir da parceria entre a extensão universitária e educação não formal. 2021. 122 f. Dissertação (Mestrado em Educação Científica e Ambiental) — Universidade Federal de Lavras, Lavras, 2021.
MARTINS, L. M. Fundamentos da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica. Currículo Comum para o Ensino Fundamental Municipal. Bauru: Prefeitura Municipal de Bauru, 2016. p. 41–79.
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