Descrição
Abstract. This study examines how the principles of the Honey Bee Network and Actor-Network Theory contribute to the understanding of grassroots social innovations in Brazil. Within the context of the epistemologies of the Global South, the work explores the connection between popular knowledge, social technologies, and sociotechnical networks, proposing a transversal dialogue between global paradigms and local practices. A qualitative methodology was adopted to analyze the cases of the Banco Palmas and the Programa Um Milhão de Cisternas. The analysis concludes that such experiences reinforce the legitimacy of marginal knowledge as vectors of innovation and that Brazilian initiatives can promote community empowerment and social transformation.
Keywords: Honey Bee Network, Actor-Network Theory, Social Technologies, Grassroots Innovations.
Resumo. Este estudo investigou como os princípios da Honey Bee Network e da Teoria do Ator-Rede contribuem para a compreensão de inovações sociais de base no Brasil. No contexto das epistemologias do Sul, o trabalho explora a articulação entre saberes populares, tecnologias sociais e redes sociotécnicas, propondo um diálogo transversal entre paradigmas globais e práticas locais. Foi adotada a metodologia qualitativa para analisar os casos do Banco Palmas e do Programa Um Milhão de Cisternas. Conclui-se que tais experiências reforçam a legitimidade de saberes marginais como vetores de inovação e que iniciativas brasileiras podem promover empoderamento comunitário e transformação social.
Palavras-chave: Honey Bee Network, Teoria do Ator-rede, Tecnologias Sociais, Grassroots Innovations.
- Introdução
Em meio a um cenário global marcado por profundas assimetrias no acesso ao conhecimento, a tecnologia e a capacidade de inovar, emergem iniciativas oriundas da sociedade civil que desafiam os modelos hegemônicos de desenvolvimento e produção de soluções tecnocientíficas.
Uma dessas iniciativas é a Honey Bee Network (HBN), criada por Anil K. Gupta, na Índia, que se tornou referência mundial na valorização das chamadas grassroots innovations — inovações de base construídas por indivíduos ou comunidades situadas fora dos circuitos formais de ciência, tecnologia e inovação (Gupta, 2016). Operando sob a lógica da reciprocidade, da justiça cognitiva e da valorização dos saberes populares, a HBN articula uma vasta rede de conhecimentos locais, oferecendo uma alternativa ética e epistemológica às formas convencionais de inovação.
Nas últimas décadas, tem crescido o interesse acadêmico sobre o papel dessas inovações de base no enfrentamento de problemas sociais complexos, especialmente nos países do Sul Global. No Brasil, autores como Dagnino (2014) e Cunha & Mello (2013) avançaram na formulação de um campo conceitual denominado Tecnologias Sociais, que dialoga diretamente com os princípios mobilizados pela HBN. Além disso, experiências emblemáticas como o Banco Palmas e o Programa Um Milhão de Cisternas exemplificam a aplicação prática de modelos de inovação enraizados nos territórios, com forte engajamento comunitário (Costa, 2013; França Filho et al, 2015).
Contudo, apesar da existência de uma literatura sólida sobre cada um desses eixos — HBN, Tecnologias Sociais, Inovação de Base — ainda são escassos os estudos que promovem uma leitura integrada e transversal entre tais experiências, especialmente a partir de uma abordagem que considere as redes sociotécnicas e a pluralidade epistêmica que as constitui. Nesse sentido, a Teoria do Ator-Rede (TAR), conforme proposta por Latour (2012), surge como um referencial potente para compreender a inovação como efeito de redes híbridas compostas por humanos, não humanos, dispositivos técnicos, saberes locais e valores simbólicos.
Diante desse panorama, este trabalho busca responder à seguinte pergunta de pesquisa: De que modo os princípios da Honey Bee Network e da Teoria do Ator-Rede contribuem para interpretar experiências brasileiras de inovação social de base, como o Banco Palmas e o Programa Um Milhão de Cisternas, na construção de um paradigma epistêmico contra-hegemônico? Com base nisso, o objetivo geral é investigar como os princípios da Honey Bee Network (HBN) e da Teoria do Ator-Rede (TAR) contribuem para a compreensão de inovações sociais de base no Brasil, contribuindo para ampliar o debate sobre inovação social em contextos periféricos.
A metodologia adotada analisa os dois casos, com enfoque qualitativo e interpretativo. Pretende-se, assim, lançar luz sobre o potencial de articulação entre saberes locais, redes de inovação e paradigmas alternativos de desenvolvimento — conectando práticas situadas a debates epistêmicos mais amplos. - A Honey Bee Network e as Inovações de Base no Brasil: Interfaces com a Teoria do Ator-Rede
A Honey Bee Network (HBN), idealizada por Anil K. Gupta na Índia, propõe uma revolução silenciosa no campo da inovação: reconhecer, documentar e apoiar soluções desenvolvidas por pessoas que atuam à margem dos sistemas formais de ciência, tecnologia e mercado (Gupta, 2016). Operando com base na ética da reciprocidade, na justiça cognitiva e no respeito ao saber tradicional, a HBN atua como uma rede polinizadora — conectando conhecimentos dispersos sem explorá-los, numa metáfora inspirada no comportamento das abelhas coletoras (Gupta, 2016).
Esse modelo de inovação endógena e participativa, embora desenvolvido no contexto indiano, encontra ressonância imediata com experiências brasileiras de Tecnologias Sociais (TS) e Inovação de Base, como formuladas por Dagnino (2014), e com práticas disseminadas por iniciativas como o Programa Um Milhão de Cisternas e o Banco Palmas. Tais experiências partem do princípio de que as soluções mais eficazes para os desafios locais são aquelas gestadas pelos próprios atores envolvidos — protagonismo esse que a HBN celebra e sistematiza.
A crítica central da HBN, assim como da TS brasileira, recai sobre o modelo hegemônico de inovação por difusão, que tende a verticalizar o conhecimento, promover dependências tecnológicas e invisibilizar os saberes populares (Dagnino, 2014). Em oposição, a inovação de base surge como uma resposta ancorada nos territórios, nas práticas culturais e nos recursos disponíveis, alinhando criatividade com escassez — o que Gupta (2016) chama de inovação frugal.
A Teoria do Ator-Rede (TAR), proposta por Bruno Latour, oferece uma lente potente para interpretar essas iniciativas. Segundo Latour (2012), o social não é uma estrutura dada, mas o efeito de associações entre atores diversos — humanos e não humanos. Ao aplicar essa abordagem à HBN e às TS brasileiras, é possível compreender tecnologias, saberes, práticas e instituições como actantes, que interagem simetricamente na construção da inovação.
Um conceito-chave da TAR que ganha destaque nesse contexto é o de tradução (Latour, 2012): os atores não apenas se associam, mas reinterpretam e adaptam os interesses uns dos outros para formar alianças. Na HBN e nas TS, essa tradução é visível quando comunidades adaptam tecnologias externas aos seus contextos ou quando pesquisadores e técnicos ajustam seus saberes às demandas locais — criando redes heterogêneas de inovação.
Essas experiências também convergem com a noção de mediação sociotécnica, conforme definida por Cunha & Mello (2013). Diferente da dicotomia entre o técnico e o social, a mediação sociotécnica reconhece que soluções inovadoras emergem da articulação orgânica entre esses dois polos. A HBN funciona, nesse sentido, como um laboratório vivo de mediações: tradutores, inovadores populares, ferramentas, instituições e contextos operam juntos para transformar desafios em soluções localizadas e replicáveis.
As experiências brasileiras analisadas posteriormente — como o Banco Palmas e o Programa Um Milhão de Cisternas — não apenas dialogam com os princípios da HBN, mas os recriam em contextos singulares. Nesses territórios, a inovação social se manifesta como uma prática política e epistêmica: questiona modelos tradicionais de desenvolvimento, reposiciona os sujeitos populares como agentes do conhecimento e articula redes colaborativas para sustentar transformações duradouras. A TAR, nesse sentido, permite visibilizar os elementos invisíveis da inovação, os bastidores da articulação entre política, afeto, técnica e subjetividade. O Quadro 1 sintetiza os conceitos apresentados aqui.
Quadro 1 - Resumo Conceitual e Convergência de Paradigmas
Conceito Definição central Conexões teóricas e práticas
Honey Bee Network Rede que coleta e difunde inovações populares sem exploração, com ética solidária Valoriza saber local, protagonismo popular e inovação frugal (Gupta, 2016)
Tecnologias Sociais Soluções co-construídas por comunidades com base em necessidades reais Mediações sociotécnicas e engajamento político (Dagnino, 2014; Cunha & Mello, 2013)
Inovação de
Base Processos endógenos e coletivos de inovação situados nos territórios Contra-hegemônicos, geradores de autonomia (Dagnino, 2014)
Grassroots Innovations Inovações nascidas da base da pirâmide social, voltadas para justiça social Presentes na HBN, no P1MC, nos BCDs; conectam saber e ação (Smith et al., 2016)
Teoria do Ator-Rede Perspectiva que entende inovação como resultado de redes de actantes heterogêneos Tradução, simetria entre humanos e não humanos, agenciamento distribuído (Latour, 2012)
Diante dessas articulações conceituais, evidencia-se que a HBN e os paradigmas da inovação de base oferecem um referencial potente para repensar o papel dos sujeitos periféricos na produção de conhecimento e na transformação social. No Brasil, essas ideias não apenas encontram ressonância, como se materializam em práticas concretas de organização comunitária, mediação sociotécnica e apropriação tecnológica. Para compreender melhor como tais princípios se manifestam em contextos específicos do Sul Global, este estudo se volta a duas experiências emblemáticas no Brasil, analisando como tecnologias sociais de base se articulam com os paradigmas teóricos discutidos.
2.1. Aplicação da HBN como lente teórica
A HBN constitui uma iniciativa paradigmática voltada para a identificação, promoção e sustentação de inovações desenvolvidas por indivíduos ou comunidades economicamente desfavorecidas, mas ricas em conhecimento prático e contextual. Com uma abordagem ascendente (bottom-up), a HBN posiciona esses atores não apenas como beneficiários de intervenções externas, mas como protagonistas na criação de soluções criativas e improvisadas para desafios locais (Gupta, 2012; Brem & Wolfram, 2014).
Essas inovações, frequentemente denominadas Grassroots Innovations, caracterizam-se pela utilização de recursos limitados e pelo foco em problemas específicos das comunidades, promovendo sustentabilidade social e ecológica (Gupta, et al, 2003; Bhatti, 2012). A literatura aponta a relevância da HBN no campo das inovações de base. Gupta (2012) destaca que a HBN não apenas documenta essas soluções, mas também assegura a proteção dos direitos intelectuais dos inovadores, promovendo o capital ético por meio da reciprocidade na troca de conhecimentos.
Complementarmente, Brem e Wolfram (2014) categorizam as Grassroots Innovations em um framework analítico que as diferencia de conceitos como jugaad e frugal innovation, ampliando a visibilidade acadêmica da HBN. Bhatti (2012) enfatiza o papel da rede como fonte de inspiração para inovações frugais, articulando a necessidade de políticas públicas que apoiem esses processos. Ainda, Gupta et al. (2003) posicionam a HBN como uma plataforma que mobiliza capital ético e social, conectando inovadores globais por meio de redes descentralizadas, como a National Innovation Foundation, criada nos anos dois mil com o apoio do governo da Índia cujo objetivo é disseminar e fortalecer as inovações tecnológicas de base.
Essa convergência teórica demonstra que a HBN não apenas catalisa inovações de base, mas também contribui para a reconfiguração de paradigmas de desenvolvimento, promovendo justiça social e sustentabilidade. A rede emerge como um modelo global que articula conhecimento local com impactos transformadores, alinhando-se aos preceitos de inovação inclusiva e epistemologias insurgentes. - Procedimentos Metodológicos
Esta pesquisa adota uma abordagem qualitativa, seguindo o desenho de estudo de casos múltiplos (Yin, 2018). A opção por este desenho metodológico justifica-se pela sua adequação para investigar fenômenos sociais dentro de seus contextos reais, especialmente quando as fronteiras entre o fenômeno (as inovações sociais de base) e o contexto (o Brasil sob a ótica das epistemologias do Sul) não estão claramente definidas. Foram selecionados dois casos: o Banco Palmas e o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC). A seleção pautou-se pelo critério de que ambos são reconhecidos como exemplos de inovações sociais de base no Brasil (Costa, 2013; Melo Neto Segundo, 2008), permitindo uma análise comparativa das articulações entre saberes populares, tecnologias sociais e a formação de redes sociotécnicas.
A análise dos casos foi conduzida por meio de artigos científicos que trataram do tema base e dos casos em questão. O procedimento analítico consistiu na aplicação das lentes teóricas da Honey Bee Network e da Teoria Ator-Rede (TAR) aos dados coletados. Esse processo envolveu a identificação, nos casos, de atores humanos e não-humanos, traduções, disputas e alinhamentos de interesses (conceitos da TAR), bem como dos mecanismos de proteção, divulgação e escalonamento de saberes locais (princípios da HBN). Dessa forma, a metodologia permitiu uma interpretação teórica sobre como os paradigmas globais se articulam com as práticas locais para gerar transformação social. - Resultados e discussões
4.1. Caso 1: Banco de Palmas
O Banco Palmas foi criado em 1998, na periferia de Fortaleza (CE), a partir da mobilização da Associação dos Moradores do Conjunto Palmeira (ASMOCONP), diante da constatação de que, embora houvesse circulação significativa de renda entre os moradores, essa renda era consumida fora do território (França Filho et al., 2012). O objetivo era reverter esse fluxo, por meio de mecanismos que promovessem o desenvolvimento local e o fortalecimento da economia solidária. Foram apresentadas abaixo informações sistematizadas sobre o caso, juntamente com as análises:
a. Contexto e motivação: O bairro era estigmatizado pela exclusão econômica e social. Com base em diagnósticos participativos, os moradores identificaram a ausência de crédito, emprego e oportunidades. Essa motivação comunitária impulsionou a criação de um banco orientado por princípios de solidariedade, autogestão e geração de renda (França Filho et al., 2012; Mostagi et al., 2019).
b. Descrição da solução: O banco oferece microcrédito produtivo e de consumo, por meio de uma moeda social (Palmas) e de metodologias participativas, como a formação de conselhos comunitários, fóruns locais e redes colaborativas. Essas ferramentas são complementadas por ações de educação financeira, mapeamento do consumo local e incentivo à produção e ao comércio na comunidade (França Filho et al., 2012).
c. Ligação com os conceitos-chave:
• HBN e Grassroots Innovation: o Banco Palmas expressa a lógica de inovação originada da base, com soluções desenvolvidas de forma comunitária e a partir de necessidades territoriais — princípios centrais da HBN (Gupta, 2016).
• Teoria do Ator-Rede (TAR): a moeda social, os instrumentos de crédito, os próprios moradores e seus saberes são actantes — elementos que participam da rede e traduzem interesses diversos, constituindo um ecossistema sociotécnico (Latour, 2012).
• Mediação sociotécnica: segundo Cunha & Mello (2013), o banco constitui uma mediação entre tecnologias financeiras, valores solidários e racionalidades populares, organizando a inovação de forma integrada.
d. Resultados e impactos: Entre 1998 e 2012, o banco concedeu mais de 50 mil microcréditos com inadimplência inferior a 2% (França Filho et al., 2012). O consumo local aumentou significativamente, passando de 20% para mais de 90% dos gastos das famílias no próprio bairro, e o banco serviu de modelo para a formação da Rede Brasileira de Bancos Comunitários de Desenvolvimento (Mostagi et al., 2019), sendo reconhecido como tecnologia social replicável. Atualmente, com mais de 25 anos de existência o Banco Palmas conta com outros projetos sociais tal qual a Renda Básica Comunitária que visa beneficiar famílias em situação de extrema pobreza do Conjunto das Palmeiras, e também o PalmaSolar, uma usina de energia solar, que objetiva o acesso da comunidade a uma energia limpa e renovável de baixo custo.
4.2. Caso 2: Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC)
O P1MC foi idealizado pela Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA) e lançado em 2003 com apoio do Governo Federal. O objetivo era assegurar acesso à água para consumo humano em famílias rurais de baixa renda na região semiárida, promovendo a convivência com o clima local e respeitando os saberes tradicionais (Dias, 2013).
a. Contexto e motivação: Historicamente, políticas de combate à seca negligenciaram a capacidade de adaptação dos povos do semiárido. A ASA propôs uma abordagem centrada na resiliência local e na valorização da organização comunitária como motor da mudança (Dias, 2013).
b. Descrição da solução: A estratégia envolveu a construção de cisternas de placas com capacidade para 16 mil litros, por meio de mutirões, formação de pedreiros locais e educação para a convivência com o semiárido. Cada família é parte ativa do processo, do planejamento à manutenção (Dias, 2013).
c. Ligação com os conceitos-chave
• HBN e inovação frugal: o P1MC compartilha com a HBN o princípio de inovações simples, acessíveis e baseadas no conhecimento local, voltadas para realidades de escassez.
• Teoria do Ator-Rede: a cisterna não é apenas um artefato técnico, mas um actante que organiza e mobiliza uma rede que inclui Estado, ONGs, técnicos e saberes comunitários (Latour, 2012).
• Mediação sociotécnica: a tecnologia da cisterna é indissociável dos elementos sociais, pedagógicos e simbólicos que a sustentam — exemplificando a mediação entre técnica e cultura (Cunha & Mello, 2013).
d. Resultados e impactos: O programa já construiu mais de meio milhão de cisternas, beneficiando milhões de pessoas, sendo que no ano de 2024 o programa entregou mais 46.421 cisternas (quarenta e seis mil, quatrocentos e vinte), marcando presença em 1.000 (mil) dos 1.417 (mil quatrocentos e dezessete) municípios do semiárido brasileiro. Seus impactos incluem a redução do tempo de deslocamento das mulheres, melhoria na saúde das famílias, fortalecimento da autoestima comunitária e estruturação de uma ampla rede territorial de protagonismo social (Dias, 2013).
4.3. Contribuições dos Casos
O estudo das experiências do Banco Palmas e do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) permite observar, em solo brasileiro, a aplicação concreta dos princípios de inovação social de base, tecnologias sociais, mediação sociotécnica e valorização do conhecimento popular.
Ambas as iniciativas constituem referências emblemáticas (Costa 2013; França Filho et al, 2015) no campo da inovação oriunda da margem — alinhadas aos valores promovidos pela Honey Bee Network e potencialmente compreensíveis pela ótica da Teoria do Ator-Rede (TAR). Ao analisar esses casos, é possível observar como artefatos técnicos, arranjos institucionais e redes de solidariedade se entrelaçam para construir soluções sustentáveis a partir da realidade dos próprios territórios. O Quadro 2 apresenta uma síntese destas análises.
Quadro 2 - Resumo da análise dos casos
Aspecto Banco Palmas P1MC – Um Milhão de Cisternas
Origem Iniciativa comunitária (ASMOCONP), Fortaleza – CE Articulação do Semiárido (ASA) em parceria com Governo Federal
Objetivo Reorganizar a economia local e promover geração de renda Garantir acesso à água e fortalecer a convivência com o semiárido
Tecnologia Social Microcrédito com moeda social, gestão comunitária, fórum local Cisternas de placas, mutirão, formação local, autogestão
Mediação Sociotécnica Integra dispositivos financeiros, sociabilidade e saberes comunitários Integra saberes tradicionais, tecnologia apropriada e engajamento social
Actantes (TAR) Moeda social, conselhos, software de crédito, vizinhança, consumo Cisterna, telhado, calhas, ONG, política pública, comunidade local
Inovação de Base / Grassroots Iniciativa local com forte protagonismo comunitário Solução simples, replicável e enraizada no conhecimento popular
Impactos Redução da evasão de consumo, aumento da autoestima, rede nacional de BCDs Acesso à água, protagonismo local, fortalecimento das redes comunitárias
Diálogo com HBN Valoriza saberes locais, promove circulação ética do conhecimento Reconhece e articula conhecimentos diversos e práticas ancestrais
A análise das experiências do Banco Palmas e do Programa Um Milhão de Cisternas evidencia que o Brasil possui práticas consolidadas de inovação social fundamentadas em princípios semelhantes aos da Honey Bee Network. Ambas mobilizam recursos locais, redes de solidariedade e tecnologias apropriadas como formas de enfrentamento às desigualdades históricas.
Com base na Teoria do Ator-Rede, é possível compreender essas iniciativas não como respostas técnicas isoladas, mas como resultados de redes híbridas de mediação, nas quais saberes, artefatos, afetos e instituições colaboram ativamente. Essas experiências fortalecem a hipótese de que a inovação de base, quando conectada à valorização dos saberes tradicionais e ao protagonismo popular, tem capacidade não apenas de solucionar demandas concretas, mas de reconfigurar o próprio entendimento sobre desenvolvimento, justiça e conhecimento no Sul Global. -
Considerações Finais
Este estudo partiu da seguinte pergunta de pesquisa: De que modo os princípios da HBN e da Teoria do Ator-Rede TAR contribuem para interpretar experiências brasileiras de inovação social de base, como o Banco Palmas e o P1MC, na construção de um paradigma epistêmico contra-hegemônico? Com base nela, buscou-se contextualizar seus princípios no Brasil por meio de práticas consolidadas de inovação territorial.
Os estudos de caso do Banco Palmas e do P1MC mostraram como tecnologias sociais podem operar como mediações sociotécnicas que articulam sujeitos populares, dispositivos técnicos e valores coletivos. Tais experiências revelam que a inovação de base é simultaneamente uma ação técnica e política — ancorada nos saberes cotidianos, na autogestão e na solidariedade.
A partir do diálogo entre HBN e TAR, emergiu uma leitura transversal que reforça a potência de abordagens construídas a partir de países do Sul Global. A proximidade entre os contextos indiano e brasileiro — marcados por desigualdades históricas e abundância de criatividade social — permite a construção de um referencial epistêmico plural, orientado pela pluralidade dos conhecimentos e pela recusa à hierarquização entre ciência acadêmica e conhecimento tradicional.
Este trabalho também reafirma a importância de validar e empoderar os sujeitos periféricos como produtores legítimos de inovação, reconhecendo que comunidades locais não apenas implementam soluções: elas as criam, testam, adaptam e compartilham com base em seus próprios repertórios culturais, afetivos e técnicos. A HBN e as inovações analisadas sustentam propostas com forte potencial transformador, promovendo justiça cognitiva, inclusão socioeconômica e resistência criativa diante de modelos de desenvolvimento verticalizados.
Por fim, os achados deste trabalho provocam governos, movimentos sociais e instituições acadêmicas a reconhecerem essas experiências como legítimos núcleos de criação, pesquisa e formulação coletiva — e não como exceções exóticas do sistema. Ao reafirmar a HBN como uma metáfora viva de polinização de saberes e articulação coletiva, este trabalho contribui para fortalecer o horizonte de inovações insurgentes que emergem das margens. Experiências como o Banco Palmas e o P1MC revelam que as fronteiras do saber técnico-científico não apenas podem, mas devem ser deslocadas em direção à pluralidade, ao enraizamento e à justiça social.
Assim, propõe-se que a inovação no Sul Global seja cada vez mais compreendida como uma prática de reexistência — aquela que, ao reconhecer o saber que pulsa fora das universidades, transforma necessidade em potência, escassez em criatividade e exclusão em redes solidárias de futuro. -
Referências
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