Descrição
Abstract. In the last years, states and municipalities have undertaken a comprehensive reform of school curriculum, moving away from a subject-centered organization toward a diverse and flexible model that incorporates proposed formative pathways. This study examines the curriculum framework of the state of Minas Gerais in the field of Natural Sciences, with a particular focus on understanding and analyzing the principle of interdisciplinarity. An analysis of the guiding documents for curriculum implementation in Minas Gerais reveals a plural and sometimes conflicting set of interpretations regarding interdisciplinarity, as well as an effort to reconcile the discourse of curricular flexibility with the pragmatic influences of the neoliberal ideology currently shaping education.
Keywords: Interdisciplinarity, curricular reform, Nature Sciences.
Resumo. Nos últimos anos, estados e municípios promoveram uma ampla reformulação dos currículos escolares, substituindo a organização destes em torno das disciplinas para a criação de um modelo diversificado e flexível associado à proposição de itinerários formativos. Este trabalho investiga a proposta curricular do estado de Minas Gerais para a área das Ciências da Natureza, com ênfase na compreensão e na análise do princípio da interdisciplinaridade. O estudo sobre os documentos orientadores da oferta curricular para o estado mineiro indica a comunicação de um conjunto plural e dissonante de significados em relação à interdisciplinaridade e a compatibilização do discurso da flexibilização com o pragmatismo oriundo do ideário neoliberal que atualmente orienta a educação.
Palavras-chave: Interdisciplinaridade, reforma curricular, Ciências da Natureza.
1. Introdução
A interdisciplinaridade tem sido discutida na educação brasileira como uma estratégia para superar a fragmentação do conhecimento e promover a integração entre diferentes campos disciplinares. Autores brasileiros que trouxeram o debate sobre a interdisciplinaridade ao país a partir da década de 1970, como Japiassu (1976) e Fazenda (1979; 1994), a compreendem não apenas como metodologia, mas como uma atitude capaz de fomentar o diálogo e a colaboração entre áreas do saber, uma vez que a interdisciplinaridade seria uma exigência do conhecimento. Fazenda (1994) recorda que o movimento interdisciplinar emergiu nos anos 1960, no contexto dos protestos estudantis europeus, como crítica à excessiva especialização do conhecimento. Todavia, Japiassu (1976) advertiu que a diluição das disciplinas sem critérios metodológicos claros poderia levar à perda de rigor científico, defendendo, portanto, uma articulação que preservasse a especificidade dos campos disciplinares sem ignorar sua interdependência. Contudo, como observa Mueller (2006) o movimento efusivo pela interdisciplinaridade se fundou em uma sociedade que transitou do modelo fordista para o pós-fordismo, em que a lógica da flexibilização do trabalho incorporada às bases das relações produtivas refletiu também no questionamento da organização do conhecimento escolar em disciplinas.
No cenário brasileiro, a interdisciplinaridade foi incorporada às políticas educacionais com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) na década de 1990 e consolidada pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que propõe que os currículos de todo país evidenciem “a contextualização, a diversificação e a transdisciplinaridade ou outras formas de interação e articulação entre diferentes campos de saberes específicos” (Brasil, 2018, p. 479). Alinhado a essa proposta, o Currículo Referência de Minas Gerais (CRMG) afirma estabelecer práticas pedagógicas orientadas pela integração dos saberes e pela articulação com a realidade social e o mundo do trabalho (Minas Gerais, 2021).
Diante desse quadro, o objetivo geral desta investigação consiste em examinar a proposta da área de Ciências da Natureza no CRMG, produzido em resposta às determinações dadas pela BNCC e pelo Novo Ensino Médio (NEM). Fundamentando-se nas teorias críticas do currículo e nos estudos da História das Disciplinas Escolares (Chervel, 1990; Goodson, 2018; Lopes, 1999), que compreendem o currículo como uma construção histórica, social e culturalmente disputada, aqui são sumarizados os primeiros resultados de uma pesquisa de Mestrado em andamento. É apresentada uma caracterização inicial dos documentos oficiais que orientam a atual proposta curricular do Estado para a etapa do Ensino Médio em relação à área de conhecimento das Ciências da Natureza e uma análise preliminar da presença das concepções de interdisciplinaridade que balizam o CRMG.
2. Metodologia
A presente investigação insere-se no campo das abordagens qualitativas em educação e assume a pesquisa documental para analisar um conjunto de documentos orientadores da oferta curricular para a rede estadual de Minas Gerais no ano de 2024, a saber: o Currículo Referência de Minas Gerais (CRMG) (Minas Gerais, 2021); a Resolução SEE nº 4908/2023 (Minas Gerais, 2023); os Planos de Curso 1º ano – Aprofundamento Integrado (Minas Gerais, 2024a); o documento Aprofundamento nas Áreas do Conhecimento 2024 (Minas Gerais, 2024b); e o Catálogo de Eletivas 2024 (Minas Gerais, 2024c). Nos quatro últimos, a análise concentrou-se nos trechos relacionados à área de Ciências da Natureza e suas Tecnologias.
A escolha dessa estratégia ancora-se em Goodson (2018), para quem o currículo escrito constitui testemunho privilegiado da estrutura institucionalizada da escolarização, fornecendo pistas tanto sobre seus fundamentos como sobre seus objetivos. Além disso, são consideradas investigações de âmbito nacional, como o dossiê organizado por Cássio e Goulart (2022), que evidencia os primeiros impactos do NEM em diferentes estados brasileiros, permitindo estabelecer aproximações e distinções em relação ao caso mineiro.
Para o exame do material, empregou-se a Análise Textual Discursiva (ATD), proposta por Moraes e Galiazzi (2016), que se fundamenta em uma abordagem fenomenológico-interpretativa e envolve três etapas: a unitarização, que fragmenta os textos em unidades de significado; a categorização, que agrupa essas unidades em eixos explicativos; e a elaboração do metatexto, que integra e reconstrói as interpretações produzidas. No presente trabalho foi realizada a primeira etapa da ATD, que consiste em fazer a segmentação dos textos escolhidos, dos quais se retiram fragmentos para transformá-los em unidades de significado. Busca-se identificar trechos com potencial interpretativo, permitindo que os sentidos emerjam diretamente dos dados (Moraes & Galiazzi, 2016).
3. Resultados e discussão
No Quadro 1 são apresentadas as caracterizações iniciais dos documentos selecionados como fonte de análise.
A caracterização preliminar dos documentos selecionados, mesmo que ainda incipiente, demonstra a explícita articulação com e o espelhamento da BNCC. Também, o necessário recorte para a análise de documentos referentes ao ano de 2024 se fez em vista do volume considerável de documentos produzidos desde a reformulação curricular imposta pela BNCC em paralelo à implementação do NEM. Com isso, criou-se uma dinâmica nas redes escolares de produção contínua e anual de novos documentos curriculares, a fim de renovar os catálogos das disciplinas eletivas e prover subsídios para a escolha de Itinerários Formativos.
Cabe ressaltar que se trata de um objeto de pesquisa em movimento, pois, frente às resistências em torno do NEM, novas orientações para a implementação da reforma foram colocadas a partir da Lei nº 14.945/2024, que define a atual Política Nacional do Ensino Médio, com qual se pretende a realização, a partir de 2025, de “reparos” em determinados aspectos do NEM que geraram a maior parte das insatisfações.
Um dos anúncios feitos pelo MEC ano passado foi de que “um dos principais avanços das diretrizes aprovadas é a valorização de uma educação ‘integral e integrada que traga contextualização e interdisciplinaridade, sem negar as raízes epistemológicas e históricas de cada área do conhecimento” (CNE aprova..., 2024), indicando a preocupação com o apagamento das fronteiras entre as disciplinas e, assim, demonstrando a tensão mantida entre a formação geral básica organizada em disciplinas e a oferta de uma parte diversificada referenciada em temáticas amplas desvinculadas de conhecimentos específicos.
Mais recentemente, o Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou parâmetros para a oferta dos Itinerários Formativos, almejando que, a partir de 2026, tais diretrizes sejam implementadas no Ensino Médio de escolas públicas e privadas. Segundo a matéria divulgada no próprio portal do governo, um dos conselheiros, Gastão Vieira, afirmou que “agora vamos ter parâmetros nacionais para a construção dos currículos e adaptações no Enem [Exame Nacional do Ensino Médio] para incorporar os parâmetros ora definidos. Isso não tinha antes” (CNE aprova parâmetros..., 2025).
Quadro 1 - Caracterização dos documentos selecionados
Documento Caracterização (objetivo, estrutura, páginas) Identificação da presença do termo “interdisciplinaridade”
Currículo Referência de Minas Gerais (Minas Gerais, 2021) Documento normativo de 497 páginas, alinhado à BNCC, organizado em 10 capítulos, enfatizando interdisciplinaridade. Orienta a elaboração dos planos e ações educacionais para o Ensino Médio em Minas Gerais Os termos “interdisciplinar” ou “interdisciplinaridade”, somados, possuem 75 aparições ao longo do documento inteiro
Resolução SEE-MG 4908/23 (Minas Gerais, 2023) Documento apresenta 37 páginas, estabelece diretrizes para a organização dos componentes curriculares e da carga horária, distribuídos em módulos-aula e atividades complementares, visando garantir uma estrutura educacional alinhada às necessidades dos estudantes e às exigências da legislação nacional. Dispõe sobre as matrizes curriculares do Ensino Fundamental, Ensino Médio e das modalidades de ensino, na rede Estadual de Ensino de Minas Gerais, com início em 2024, e dá orientações correlatas. Não há aparições.
Planos de Curso 1º ano (Minas Gerais, 2024a) Documento que apresenta um plano anual para cada uma das quatro áreas do conhecimento (Linguagens e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias, Matemática e suas Tecnologias e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas), a serem ofertadas como um Aprofundamento Integrado para alunos do 1º ano do Ensino Médio, a fim de prepará-los para a escolha dos Aprofundamentos Optativos nos 2º e 3º anos Os termos “interdisciplinar” ou “interdisciplinaridade”, somados, possuem 9 aparições ao longo do documento inteiro.
Aprofundamentos nas áreas de Conhecimento 2024: Portfólio para 2º ano e 3º ano do Ensino Médio (Minas Gerais, 2024b) O documento é organizado em seções que abordam aspectos fundamentais para a implementação do currículo no primeiro ano do Ensino Médio e apresenta 63 páginas. Documento que apresenta os 12 arranjos de aprofundamentos optativos ofertados aos estudantes do 2º e 3º anos no ano de 2024 Os termos “interdisciplinar” ou “interdisciplinaridade”, somados, possuem 6 aparições ao longo do documento inteiro
Catálogos de Eletivas 2024 (Minas Gerais, 2024c) Apresenta diretrizes para a organização curricular dos anos finais do Ensino Médio na rede estadual, contém 55 páginas. Indica ser um “material resumido para orientar as escolhas de professores e estudantes”. Documento que apresenta para a rede estadual de ensino o conjunto de eletivas para o ano de 2024, a partir do qual as escolas definem quais destas serão ofertadas aos estudantes Os termos “interdisciplinar” ou “interdisciplinaridade”, somados, possuem 4 aparições ao longo do documento inteiro
Fonte: autoria própria.
O aparente impasse entre a disciplinaridade e a interdisciplinaridade externada na fala do conselheiro, a princípio, endossa o que Goodson (2018, p. 23) afirma acerca dos documentos curriculares forçarem o conhecimento escolar a uma “tensão permanente entre disciplinas e práticas integradas”. No CRMG, essa tensão mencionada por Goodson se expressa pelo uso recorrente do termo “interdisciplinaridade”, que aparece com frequência, mas presumivelmente com significados diferentes, cuja análise ainda será objeto de investigação. Decerto, a respeito disso cabe a ponderação de Pombo (2008), que avalia que o termo foi sendo usado de forma tão frequente e, muitas vezes, sem o devido embasamento teórico, que acabou se tornando vago e esvaziado de sentido em muitas práticas pedagógicas. Também se nota que, embora a ideia de integração entre os saberes seja um dos principais apelos da BNCC e do NEM para tornar o currículo do Ensino Médio mais flexível e, consequentemente, menos centralizado em disciplinas, o termo “interdisciplinaridade” não está amplamente presente nos documentos analisados, exceto no próprio CRMG.
Assume-se aqui a hipótese de que a retórica da interdisciplinaridade, em meio à evidente valorização das competências e habilidades como mote da pedagogia desejada nesse movimento reformista, favorece o esvaziamento do conhecimento no currículo escolar pelo modo como essa interdisciplinaridade é transformada em “adisciplinaridade” nos itinerários formativos. Essa compreensão se ancora no reconhecimento da subordinação das atuais reformas a uma agenda educacional influenciada por interesses externos à escola, especialmente os de organismos internacionais. Essa lógica, como alertam Frigotto (2011) e Kuenzer (2010), transforma a educação em instrumento de ajustamento ao mercado, colocando-a distante do ideal de formação de sujeitos autônomos e críticos.
Na medida em que os conhecimentos escolares são relativizados para ceder lugar ao “saber-fazer” subjacente à promoção última de competências e habilidades, concorre-se com a função precípua da educação de socialização das ciências, da filosofia e das artes historicamente produzidas pela humanidade. Isso afeta particularmente os processos do ensino de Ciências, que há muito é confrontado pelo desafio de lidar com a tensão disciplinaridade-interdisciplinaridade nos Anos Finais e, agora também no Ensino Médio com a definição de uma grande área denominada “Ciências da Natureza”, cuja caracterização é pouco esclarecida nos documentos curriculares. Tais reflexões serão aprofundadas ao longo da pesquisa, especialmente no que diz respeito às implicações dessas concepções para a identidade e as finalidades da educação em Ciências no Ensino Médio.
Agradecimentos
As autoras agradecem o Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Ambiental da UFLA no qual o presente trabalho se desenvolve.
4. Referências
Brasil (2018), Base Nacional Comum Curricular. Brasília: Ministério da Educação.
Chervel, A. (1990), História das Disciplinas Escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, 2:177-229.
CNE aprova novas diretrizes para o ensino médio. Ministério da Educação, Brasília, 08 nov. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/mec/pt-br/assuntos/noticias/2024/novembro/cne-aprova-novas-diretrizes-para-o-ensino-medio. Acesso em: 18 dez. 2024.
CNE aprova parâmetros de itinerários formativos do ensino médio. Ministério da Educação, Brasília, 11 abr. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/mec/pt-br/assuntos/noticias/2025/abril/cne-aprova-parametros-de-itinerarios-formativos-do-ensino-medio. Acesso em: 01 jun. 2025.
Fazenda, I. C. A. (1979), Integração e interdisciplinaridade no ensino brasileiro: efetividade ou ideologia?. São Paulo: Edições Loyola.
Fazenda, I. C. A. (1994), Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa. Campinas: Papirus, 15. ed.
Frigotto, G. (2011), Os circuitos da história e o balanço da educação no Brasil na primeira década do século XXI. Revista Brasileira de Educação, 16: 235-254.
Goodson, I. F. (2018), Currículo: teoria e história. Petrópolis: Vozes, 15. ed.
Japiassu, H. (1976), Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago.
Kuenzer, A. Z. (2010), O ensino médio no Plano Nacional de Educação 2011-2020: superando a década perdida?. Educação & Sociedade, 31: 851-873.
Lopes, A. R. C. (1999), Conhecimento escolar: ciência e cotidiano. Rio de Janeiro: EdUERJ.
Minas Gerais (2021), Currículo Referência de Minas Gerais. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais.
Minas Gerais (2023), Resolução Secretaria de Estado de Educação n.º 4908, de 11 de setembro de 2023. Dispõe sobre as matrizes curriculares do Ensino Fundamental, Ensino Médio e das modalidades de ensino, na Rede Estadual de Ensino de Minas Gerais, com início em 2024, e dá orientações correlatas. Diário do Executivo, Minas Gerais, 12 set. 2023, 26-60.
Minas Gerais (2024a), Planos de Curso 1º ano: Aprofundamento Integrado nas quatro áreas do conhecimento. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais, 63p.
Minas Gerais (2024b), Aprofundamentos nas áreas de Conhecimento 2024: Portfólio para 2º ano e 3º ano do Ensino Médio. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Educação, 55p.
Minas Gerais (2024c), Catálogo de Eletivas 2024. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Educação, 178p.
Moraes, R, & Galiazzi M. C. (2016), Análise Textual Discursiva. Ijuí: Editora Unijuí, 3. ed.
Mueller, R. R. (2006), Trabalho, produção da existência e do conhecimento: o fetichismo da interdisciplinaridade. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Centro de Ciências da Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
Pombo, O. (2008), Epistemologia da interdisciplinaridade. Ideação, 10(1): p. 9-40
| Selecione a modalidade do seu trabalho | Resumo Expandido |
|---|