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Tecnociência e Educação Científica: uma abordagem cinematográfica sobre a natureza da ciência contemporânea

10 de nov. de 2025 13:30
1h 30m
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Resumo Expandido Educação Científica e Ambiental 1º Dia

Descrição

A relação entre ciência e tecnologia no mundo contemporâneo é relevante não apenas por caracterizar a sociedade contemporânea e permear todos os seus âmbitos – político, social, cultural, ambiental e econômica –, mas também porque essa relação revela práticas que partem de interesses de grupos sociais influentes em sua concepção (Dagnino, 2008).
Nesse contexto, questões como estas se abrem: de que maneira a atividade tecnológica e científica, em constante colaboração, moldam novas perspectivas para a educação científica?; que elementos devem ser considerados ao se analisar o papel e os objetivos do ensino de ciências, sabendo-se que este é desenvolvido no seio de uma sociedade orientada por uma dinâmica tecnocientífica capitalista? Tomando-as como ponto de partida, o presente trabalho admite o conceito de “tecnociência” – introduzido pelo filósofo belga Gilbert Hottois na obra Le Signe et la technique: La Philosophie à l’épreuve de la techniquee (1984) e, posteriormente, popularizado por Bruno Latour e por Donna Haraway para designar a ciência produzida no contexto da tecnologia e por essa dirigida (Koslowski, 2015) – para analisar como essa relação indissociável entre ciência e tecnologia nesta sociedade marcadamente tecnocrática reorienta a educação em Ciências no processo de escolarização.
Para tanto, esta pesquisa de mestrado em andamento se propõe, primeiramente, a mergulhar em alguns fatores sociais com grande impacto no histórico do ensino de ciências, em geral, e no Brasil, em particular, para evidenciar como as relações entre ciência, tecnologia e sociedade deram contornos à educação científica. Em seguida, coloca como segunda etapa analisar como o discurso da tecnociência na atualidade posiciona certas concepções de ciência e tecnologia que alimentam o cientificismo, o produtivismo, o inovacionismo e o empreendedorismo nas instituições de pesquisa, colocando a produção do conhecimento científico a serviço de interesses privados de grupos dominantes.
Este debate será promovido a partir do diálogo com o cinema documentário, em que a produção De Volta ao Espaço (2022) será mobilizada para refletir as imbricações entre ciência e tecnologia e sua subordinação ao capital. Cabe sublinhar que o cinema é compreendido aqui não como ferramenta pedagógica, mas como arte autônoma cujos discursos possibilitam pensar sobre os dilemas da sociedade e, particularmente neste trabalho, sobre o papel da tecnociência e seus desdobramentos no âmbito educacional.
A relação entre ciência e tecnologia na sociedade contemporânea
Qualquer tentativa de diagnóstico da sociedade atual sem mencionar os problemas ou soluções que orbitam a relação entre ciência e tecnologia será uma leitura incompleta. Com base nisso, após identificar momentos históricos em que a sociedade gerou mudanças significativas no ensino de ciências, torna-se pertinente refletir sobre as questões contemporâneas que permitem antever possíveis transformações futuras na educação científica. A principal questão escolhida para estudo neste trabalho é a relação entre ciência e tecnologia, à medida que esta molda novas dinâmicas sociais e, consequentemente, impacta a educação.
Ao observar o desenvolvimento tecnológico com base em uma lógica eficientista, nota-se que sua colaboração com a ciência tende a priorizar uma abordagem produtivista, subordinada às demandas tecnológicas. Por outro lado, a concepção histórica de ciência como neutra e racional permite que sua prática seja instrumentalizada pelas exigências de mercado, desconsiderando os valores implicados nesse processo. A crença em uma ciência livre de valores ainda exerce influência significativa na percepção pública da tecnociência (Dagnino, 2008).
Relativizando a polarização entre tecnologia e progresso, Dagnino argumenta que a questão central não reside na tecnologia ou no progresso em si, mas na multiplicidade de possíveis tecnologias e caminhos de progresso disponíveis à escolha. No entanto, ele também reconhece que a distribuição desigual de poder entre os atores sociais influencia diretamente o processo de concepção tecnológica, contribuindo para a injustiça social (Dagnino, 2008). Nesse sentido, para que se possa lidar criticamente com essa realidade, é necessário compreender os valores éticos, estéticos e culturais embutidos na tecnologia – o que a posiciona, na visão do autor, para além do mero critério de eficiência.
A emergência da tecnociência
Os contornos de uma ciência contemporânea são, segundo Évora (1992), principiados pelas profundas transformações que ocorreram na ciência a partir do final do século XIX, que levaram ao aparecimento de novas teorias e sistemas epistemológicos, os quais carregavam consigo a crítica à ideia de razão absoluta e expressavam a crise da relação entre ciência e filosofia. Essa “época de ouro” que originou a ciência contemporânea caracterizou-se pelo desenvolvimento de métodos experimentais e matemáticos e por êxitos proeminentes das ciências exatas e naturais conjugados ao aprimoramento de instrumentos de alta precisão e de importantes aplicações técnico-industriais.
A partir de então, tornou-se mais difícil dissociar a ciência da tecnologia. Como aponta Núñez (2000), os limites entre as atividades que tradicionalmente originaram ciência e tecnologia ficaram cada vez mais tênues, sendo o processo de integração entre ambas um fenômeno crescente desde a segunda metade do século XX, intensificando-se no século XXI.
A imagem clássica da ciência como uma busca isolada pela verdade já não corresponde à realidade atual, em que ciência e tecnologia são impulsionadas por interesses industriais e geopolíticos. Para Dagnino (2008), reconhecer a intensificação dos vínculos entre ciência e tecnologia – característica da tecnociência – implica adotar uma postura crítica e engajada. Ele destaca, ainda, que o ambiente de concorrência do capitalismo global e o caráter tácito e apropriável do conhecimento tecnológico diluem as fronteiras entre pesquisa aplicada (tradicionalmente ligada às empresas) e pesquisa básica (historicamente associada às universidades).
Oliveira (2003) e Núñez (2000) reforçam que, diante da consolidação da tecnociência, o valor atribuído ao conhecimento como fim em si mesmo perde espaço, sendo substituído por uma lógica funcionalista voltada à aplicação prática. Assim, os limites entre ciência e tecnologia tornam-se cada vez mais esmaecidos.
Apesar da promessa de que a tecnociência possa gerar melhores condições sociais, Dagnino (2008) afirma que, inserida em contextos marcados pela desigualdade, tanto a ciência quanto a tecnologia podem contribuir para a manutenção dessas desigualdades, ao invés de reduzi-las.
A consolidação da tecnociência, portanto, representa o fim do mito da ciência pura. A conexão entre ciência e tecnologia passou a ser assimilada como parte da prática científica dominante, que incorpora os métodos e valores da tecnologia, conformando uma nova forma de fazer ciência – mais voltada à produção e à lógica do mercado do que ao desenvolvimento humanizado e socialmente justo.
Cinema documental como proposta de diálogo-reflexão
No presente trabalho, o cinema é concebido como instância autônoma de produção de sentido, dotada de estatutos próprios de organização estética e discursiva, e não como mera ferramenta instrumentalizável para fins pedagógicos. De acordo com Aumont (1992), a linguagem cinematográfica constitui uma construção estética singular, regida por códigos próprios de articulação do visível e do enunciável, o que a torna inapreensível pelas lógicas utilitárias de uso didático.
O documentário De Volta ao Espaço (2022), dirigido por Jimmy Chin e Elizabeth Chai Vasarhelyi, acompanha a trajetória da empresa SpaceX, fundada por Elon Musk, e mostra como ela se tornou uma das protagonistas da nova corrida espacial. A obra começa mostrando o momento histórico do primeiro voo espacial comercial tripulado pela SpaceX em direção à Estação Espacial Internacional (ISS) em 2020, com os astronautas da NASA Doug Hurley e Bob Behnken. Esse evento é usado como ponto de partida antes de recuar no tempo para mostrar os antecedentes, desafios e falhas iniciais.
Em seguida, entra em cena toda a fase de desenvolvimento da empresa, marcada por obstáculos tecnológicos, financeiros e de engenharia, pelos lançamentos que deram errado, pelas explosões e pelas tentativas repetidas. Esse percurso destaca o trabalho conjunto de técnicos, cientistas e engenheiros, além do apoio, por vezes controverso, da NASA. A narrativa também valoriza os aspectos humanos, ao mostrar a vida dos astronautas, suas famílias, as tensões e emoções envolvidas no processo. Paralelamente, ressalta a visão de Elon Musk sobre o futuro da humanidade, defendendo a necessidade de explorar outros planetas e tornar a espécie humana multiplanetária.
Visualmente impactante, o documentário combina imagens impressionantes de foguetes e do espaço com depoimentos e bastidores, transmitindo tanto a grandiosidade tecnológica quanto o caráter visionário do projeto. Mesmo assumindo um tom bastante otimista, a produção chama atenção para o simbolismo da retomada das missões tripuladas lançadas a partir do solo norte-americano e para o papel crescente da iniciativa privada na exploração espacial.
Conforme apontam Comolli e Narboni (1969), o cinema é um dispositivo ideológico, no qual os discursos, mesmo sob a aparência de neutralidade, operam práticas de significação que interpelam os sujeitos e a realidade social. Em consonância com essa perspectiva, Hall (2003) argumenta que os produtos culturais, incluindo o cinema, são mediadores das identidades sociais, refletindo e ao mesmo tempo construindo as relações de poder e saber. Por fim, Metz (1972) contribui para essa análise ao sugerir que o cinema, enquanto linguagem, opera de forma similar a outros sistemas semióticos, ao produzir significados através de uma estrutura de signos próprios, cuja interpretação não pode ser simplificada para um discurso de representação da realidade.
Nessa direção, o gênero do cinema documental é compreendido não como uma forma neutra de registrar e disseminar conhecimentos científicos, mas como um dispositivo ideológico que constrói narrativas a partir de posições específicas. Apesar de frequentemente associado à ideia de verdade e objetividade, o documentário realiza escolhas estéticas, narrativas e discursivas que moldam sua representação da realidade. Como afirma Nichols (2010), o documentário não mostra o mundo “como ele é”, mas o organiza segundo um ponto de vista, produzindo sentido e interpelação.
Assim, ao tratar de temas científicos, o cinema documental não apenas comunica fatos, mas também participa das disputas simbólicas sobre o que é ou não considerado ciência legítima, quem tem autoridade para falar sobre ela e quais interesses estão em jogo. Esse aspecto é fundamental para o presente estudo, pois questiona a naturalização da ciência e do documentário como instâncias isentas de ideologia. Ambos operam com valores, visões de mundo e disputas por hegemonia, o que exige uma postura crítica frente às suas representações — especialmente no contexto educacional, no qual muitas vezes o documentário é tratado como fonte “pura” de informação.
O documentário é compreendido, segundo a perspectiva bakhtiniana adotada no trabalho, como um gênero discursivo que articula dimensões éticas, estéticas e políticas na construção de sentidos sobre a realidade (Bakhtin, 2011). Trata-se de uma produção discursiva que não espelha a realidade, mas a reconstrói discursivamente a partir de escolhas valorativas, ideológicas e enunciativas feitas pela equipe autoral, que, por meio da organização dos elementos verbais, vocais, visuais e dos recursos de edição, dá forma a um determinado projeto de dizer (Paula, 2019). Assim, o documentário é um enunciado socialmente situado, que, ao colocar em circulação sentidos sobre sujeitos, práticas e acontecimentos, atua como uma prática discursiva atravessada pela dialogia, pela historicidade e pela polifonia social (Bakhtin, 2011; Volochínov, 2013). Desse modo, ele não apenas narra fatos, mas também posiciona sujeitos, tensiona discursos e (re)significa práticas sociais, construindo uma narrativa que mobiliza efeitos de sentido a partir da interação entre palavra, imagem, som e silêncio (Aumont & Marie, 2003; Paula, 2019).
Partindo dessas premissas, o presente estudo propõe a análise discursiva de uma obra cinematográfica contemporânea, entendendo-a como prática cultural que expressa, tensiona e reconfigura saberes sociais – entre eles, os saberes científicos –, articulando-se, assim, às dinâmicas de transformação do ensino de ciências na contemporaneidade.
Considerações Finais
A análise proposta evidencia que a consolidação da tecnociência redefine a prática científica ao subordiná-la, em grande medida, às demandas do mercado e da lógica produtivista, o que impacta diretamente o ensino de ciências e a formação cidadã. Nesse cenário, o cinema documental se apresenta como um espaço privilegiado para problematizar tais questões, uma vez que, ao mesmo tempo em que comunica saberes científicos, também constrói discursos e interpretações sobre a realidade. Assim, compreender ciência, tecnologia e cinema em diálogo permite não apenas desvelar seus vínculos ideológicos, mas também ampliar as possibilidades formativas, estimulando uma postura crítica diante das relações entre conhecimento, sociedade e educação. Tais reflexões serão aprofundadas ao longo da pesquisa, especialmente no que diz respeito às implicações dessas concepções para a identidade e as finalidades da educação em Ciências na contemporaneidade.
Agradecimentos
As autoras agradecem o Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Ambiental da UFLA, no qual o presente trabalho se desenvolve, e o apoio financeiro das agências CAPES, CNPq e FAPEMIG.
Referências
Aumont, J. (1992), A estética do filme. Lisboa: Edições 70.
Aumont, J. &, Marie, M. (2003), Dicionário teórico e crítico de cinema. São Paulo: Papirus, 2. ed.
Bakhtin, M. M. (2011), Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 6. ed.
Comolli, J.-L. &, Narboni, P. (1969), Cinema/ideologia/crítica. Revista Cinética.
Dagnino, R. P. (2008), Neutralidade da ciência e determinismo tecnológico: um debate sobre a tecnociência. Campinas: Editora da Unicamp.
Évora, F. R. R. (1992), Prefácio. In: Évora, F. R. R. (Ed.), Século XIX: o nascimento da ciência contemporânea. Campinas: UNICAMP, Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, v. 11, p. xiii-xix.
Hall, S. (2003), Da diáspora: identidades e mediações culturais. São Paulo: Editora UNESP.
Koslowski, A. (2015), É o conceito de tecnociência confuso? Philósophos, 20(1): 11-36.
Metz, C. (1972), A linguagem cinematográfica: semiologia do cinema. Rio de Janeiro: Editora Graal.
Nichols, B. (2010), Introdução ao documentário. São Paulo: Papirus, 2. ed.
Núñez, J. (2000), La ciencia y la tecnología como procesos sociales: lo que la educación científica no debería olvidar. Havana: Editorial Félix Varela.
Oliveira, M. B. (2003), Desmercantilizar a tecnociência. In: Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. Porto: Afrontamento.
Paula, A. F. (2019), Análise verbivocovisual: uma proposta metodológica para estudos dialógicos dos discursos multimodais. Uberlândia: EDUFU.
Volochínov, V. N. (2013), Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Editora 34, 14. ed.

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Autor

Vitória Costa (UFLA)

Co-autor

Jennifer Caroline de Sousa (UFLA)

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